A Saga de Magus de Jim Starlin: Religião, fanatismo e dor.

Desde a criação dos quadrinhos muitos autores fizeram história escrevendo clássicos absolutos, alguns clássicos são lembrados e relembrados como Cavaleiro das Trevas e Watchmen. Outros clássicos são esquecidos por alguns leitores, ou pouco comentados em relação a determinadas obras, e esse é o caso de toda a fase do Jim Starlin escrevendo e desenhando o Adam Warlock.

Mas antes de adentrar o mundo distópico do qual o Starlin brilhantemente escreveu é válido contextualizar os personagens dessa obra. Pra começar temos o Adam Warlock, personagem criado pela lendária dupla Stan Lee e o Rei dos quadrinhos Jack Kirby em meados de 67, na revista do quarteto, especificamente nas edições #66-#67 e mais tarde em Thor #165-#166 em 69. Adam Warlock (Ou Ele) era mais um personagem da era de prata com motivações simples, mas que ainda sim tinham sua qualidade, anos mais tarde Roy Thomas e Gil Kane assumiram o título de uma revista própria do personagem. Thomas e Kane jogaram o Warlock na contra terra, um local criado pelo Alto Evolucionário para ser uma espécie de zoológico para seus experimentos envolvendo espécies dos quais ele criou. Todos esses elementos estão devidamente adaptados em Guardiões da Galáxia Volume 3. Mas a coisa que difere no filme é que o Warlock na contra terra se tornou uma espécie de messias daquela população, ajudando-os a confrontar o maligno Homem-Fera e seus lacaios.

Warlock no traço do Rei dos quadrinhos Jack Kirby.

Durante as edições do Adam Warlock na contra terra ele comete falhas que levam pessoas que ele jurou proteger a morte, diante disso Warlock se questiona se é de fato o salvador da raça humana como ele acreditava que era. Embora a história de Warlock na contra terra tenha ideias interessantes não foi o suficiente para manter o titulo por muito tempo e logo na edição de número #8 a revista foi cancelada. A história teve que ser concluída na revista do Incrível Hulk nas edições #176 a #178 (junho-agosto de 1974).

Incredible Hulk #178 – Aqui encerra a fase de Warlock na contra terra.

Tudo indicava que Warlock seria um personagem coadjuvante da Marvel, aparecendo em revistas de terceiros e desaparecendo da cronologia em algum momento, porém tudo mudou quando em fevereiro de 1975 Adam Warlock volta para a revista Strange Tales e dessa vez escrita pelo Jim Starlin o outro protagonista dessa história. Jim Starlin é um escritor e desenhista de quadrinhos, ele começou sua carreira na década de 70 quando arte-finalizava a revista do Homem-Aranha, depois escreveu uma edição do Homem de Ferro onde lá criou o Drax e o megalomaníaco Thanos!


Jim Starlin o arquiteto de toda essa historia.

Se isso já não era suficiente ele também escreveu o Capitão Marvel, personagem do qual ele renovou e o matou (em definitivo) anos depois, nessa sua fase a frente do personagem ele mais uma vez inseriu suas criações no meio da bagunça. Transformando o Thanos em um dos arqui-inimigos do Capitão Marvel! Mas ele não parou por aí e já em 75 ele começou a escrever e desenvolver o Adam Warlock na revista Strange Thales, e com o sucesso das publicações, a revista cancelada do Warlock voltou a ser publicada indo das edições #9 a #15.

E entra em cena Jim Starlin.

Se na contra terra o Adam Warlock questionava-se de fato era o herói daquele povo, aqui o Jim Starlin aumenta essas indagações e incoerências a um nível até então nunca visto.

A primeira coisa que o Starlin fez com o Warlock foi criar um dos seus arqui-inimigos: O Magus, que revela ser o próprio Adam Warlock do futuro! O vilão megalomaníaco explica que após Warlock enfrentar uma criatura chamado Intermediário (E perder!) ele foi transportado a um domínio bizarro que existe entre a realidade a ilusão e após flutuar por eras Warlock aprenderá os segredos do Caos e Ordem se tornará o seu eu do futuro maligno.  

Na história, Adam descobre sobre uma instituição religiosa chamada Igreja Universal da Verdade! Igreja criada pelo próprio Warlock após se tornar o terrível Magnus. Essa igreja se torna uma ceita mortal, que tortura, mata e escraviza qualquer um que não aceite fazer parte daquele culto maligno. Starlin utiliza essa narrativa para demonstrar o quão perigoso a fé cega pode ser e o quão nocivo é seguir cegamente líderes carismáticos.

Em uma das páginas mais sinistras dessa história, Adam se encontra com alienígenas que o explicam como a igreja isola os que não são humanoides e os escravizam por não serem feitos a imagem e semelhança do seu criador. Uma clara analogia ao preconceito racial e da manipulação da massa. Adam, assim como o leitor, fica horrorizado ao se deparar com essa realidade e mais ainda com a verdade de que esse genocida é quem ele se tornará nos próximos anos.

Starlin insere novos personagens como Pip o Troll e a maior assassina do espaço a Gamora, que mais tarde se revela ser filha dos Thanos, o titã louco. Thanos inclusive ajuda o Warlock em sua missão de deter o seu eu do futuro, com suas próprias ambições que ele revela com o passar das edições. Starlin no meio desse confronto de personagens, brinca com as formas e enquadramentos da página, lembrando muito o que o Frank Miller fará no futuro com o Cavaleiro das Trevas.

Starlin leva Warlock em uma jornada para conhecer a si mesmo. Em vários momentos o Adam questiona se é capaz de impedir o destino sombrio que o espera, e a cada novo desafio mais melancólico ele fica. Ao se deparar com uma realidade onde o povo vive sob uma ditadura religiosa, Starlin questiona a necessidade humana de buscar uma liderança e como isso é danoso para a humanidade e não o bastante ainda coloca na boca do personagem um texto sobre cada um ser o seu próprio líder e protagonista de sua história.

Adam Warlock recusando o papel de líder, um papel no qual ele já foi na contra terra.

Durante sua jornada para se auto destruir, Warlock encontra as mais variáveis criaturas: De carrascos que usam a religião para causar dor, até homens bons que seguem ordens sem questionar a realidade por trás das mesmas. É importante dizer que Jim Starlin serviu como fotógrafo da Marinha durante a Guerra do Vietnã e provavelmente deve ter visto atrocidades em busca de uma falsa paz.

“Estava tão louco quanto qualquer um depois do Watergate e do Vietnã”, disse Starlin em Marvel: The Story Never Told.

Outra interessante adição para a trama é o parceiro de aventuras do Adam Walorck: Pip o Troll! Além de um ótimo alivio cômico, Pip é um excelente contraponto do próprio Warlock. Enquanto Adam se martiriza pelas escolhas que tomou, as que não tomou e as que tomará, Pip não enxerga com qualquer tipo de consequências dos seus atos, agindo irresponsavelmente várias vezes causando diversos problemas para si mesmo. Warlock é um homem amargurado que se culpa por diversas coisas (Algumas fora de seu controle) e tenta ao máximo seguir o caminho da penitencia, Pip por outro lado vai em contramão a tudo isso, para ele nada mais importa além de bebidas, mulheres e dinheiro.

A Gamora também cumpre um papel fundamental no desenvolvimento do Adam Warlock. Considerada a mulher mais perigosa da galáxia, Gamora é filha do titã louco, e sendo Thanos um amante da morte a sua filha metaforicamente torna-se a arauta da morte, indo em contraponto ao Adam Warlock que é amante da vida e da justiça. E o fato desses personagens serem tão diferentes entre si é o que torna a jornada do Warlock tão interessante de ser vista.

Pip o Troll causando confusão onde passa e o Warlock tendo que arrumar a bagunça.

Gamora a mulher mais perigosa da galáxia!

Uma jornada psicodélica.

Para Magus o conceito de certo e errado são apenas mentiras pra manipular o homem e que a morte e o intento são os reais pilares da verdade, diante dessa iluminação ele resolve se tornar o ditador central do universo, um “deus verdadeiro” da humanidade, uma visão bastante niilista do aspecto humano. Em contrapartida o Thanos chega para questionar essa visão do Magus, para Thanos este mesmo conceito na verdade é o triunfo da morte perante a humanidade e sendo a verdade subjetiva ele pode aceitar ou recusar de livre e espontânea vontade.

O existencialismo é bastante presente em toda a saga de Magus, já que para os existencialistas ninguém além do próprio individuo é responsável pelo sucesso ou fracasso, ideia essa questionada pelo próprio Magus que defende que o futuro é imutável e nada pode ser feito para impedir o inevitável. Starlin nesse confronto questiona se somos capachos do destino e que nosso futuro é de fato imutável mesmo que seja um futuro tenebroso ou se temos a opção de escolhermos o que podemos nos tornar e consequentemente decidirmos o nosso próprio destino. Esse elemento foi usado nas revistas do Hulk anos depois em O Futuro Imperfeito.

Magus explicando que o destino é imutável e Warlock não pode impedir o inevitável.

Thanos ataca Magus não apenas com poderes, mas com conceitos.

Starlin usa todo o contexto histórico dos anos 70 para compor sua história. O auge da música disco, a psicodelia hippie e o movimento do rock progressivo são usados como elementos para a hq. A utilização de cores vibrantes (E figurinos também), um visual psicodélico, com páginas surrealistas e com uma atmosfera saída de uma space-opera setentista, Starlin transforma a história do Warlock em uma verdadeira jornada apoteótica em busca da verdade.

O resultado é um show de criatividade e desenhos capazes de deixarem qualquer um de queixo caído, os quadros são usados de maneiras não convencionais, a inspiração nos trabalhos de Steve Ditko é muito clara (Dito pelo próprio Starlin na revista). Homenageando a sua rápida, mas brilhante fase no Dr Estranho onde usou de elementos psicodélicos e surrealistas para compor os mundos mágicos do Estranho. Starlin traz isso de volta, não apenas para criação de mundos kafkianos, mas para o próprio desenvolvimento do Warlock e sua jornada em busca de justiça.

A psicodelia da verdade.

A ideia de chão e céu se confundem.

O mundo psicodélico do Intermediário.

Um palhaço no comando.

A Marvel na época passava por uma crise editorial enorme. De 1975 à 1977 (Época em que a história foi publicada) foram anos caóticos para a editora que sofria com a troca constante de editores. Stan Lee ao sair do cargo deixou Roy Thomas no comando, mas ele incapaz de segurar o tranco da coisa logo foi substituído por Len Wein, mesmo sendo conhecido na editora como um homem tranquilo foi afastado de seu cargo após esganar Al Landau, que era publiser na Marvel e sem avisar ao Len Wein trocou seu parceiro de trabalho Ross Andru, que na época trabalhavam juntos na revista do Homem-Aranha para desenhar o crossover do teioso com o Super-Homem. Marv Wolfman o substituiu, porém também não suportou o rojão e foi substituído por Gerry Conway e que mais rápido que a gestão anterior durou apenas um mês, sendo substituído por Archie Goodwin que segurou as pontas o máximo possível até dar lugar ao Jim Shooter em 1978.

Toda essa bagunça de troca de editores interferia diretamente no trabalho do Starlin, que sofria com cancelamentos de suas séries. Para se ter uma ideia, a publicação começou em Strange Tales, passou para o título solo do Warlock e que após a sua #15 edição teve a série cancelada. Starlin foi obrigado a concluir seu épico em Avengers Annual #7 e Marvel Two-in-one Annual #2. Irritado com o jeito que estava sendo tratado dentro da editora ele trouxe sua “vingança” na história 1000 Clowns!

Na história Adam Warlock é preso pela Igreja Universal da Verdade e é obrigado a passar por uma lavagem cerebral ou o que eles chamam de “indoutrinação”. Dentro do mundo fantasioso ele se depara com palhaços que pintam (no sentido literal) seu rosto e o leva ao lixão, lá os palhaços produzem uma montanha gigantesca de lixo que desaba e mata alguns trabalhadores, a explicação, de acordo com o chefe palhaço, ocorre porque alguns trabalhadores criam diamantes ao invés de lixo.

Um diamante no meio lixo, uma indireta daquelas feita pelo Jim Starlin.

Embora pareça boba à primeira vista, a história é uma evidente critica do Starlin a editora, o palhaço chefe se auto denomina Lentean, um anagrama do nome Stan Lee, o palhaço que pinta o rosto do Adam é chamado de Jan Hatroom outro anagrama, desta vez para John Romita, além disso essa ilusão é controlada por dois guardas que são muito familiares ao Len Wein e ao Marv Wolfman, outro detalhe é que Starlin homenageia o Steve Ditko nessa edição, não apenas pelo seu trabalho ao criar histórias psicodélicas, mas também por ser um dos primeiros a desentender-se com a editora e buscou sua independência em uma época em que algo desse tipo era impensável, além da óbvia crítica da montanha de lixo ser referente as hqs que são lançadas pela editora.

O mundo bizarro dos palhaços.

A épica Conclusão.

Feita a sua critica aos editores da época Jim Starlin volta com força total a história principal e após um confronto do Warlock vs Magus e com a Gamora falhando em matar o deus genocida a aparição do Titã louco surpreende a todos e Thanos explica ao Warlock que ele era um elemento não calculado pelo Magus permitindo ao Adam a capacidade de mudar seu passado e seu futuro. Então após um gigantesco confronto dos heróis contra o exército de Magus eles enfim conseguem impedir os planos do vilão. Warlock mata a linha do tempo na qual o tornaria o ditador, vai para o futuro, cerca de meses depois e mata a si mesmo para que dessa forma ele não se torne o Magus e consequentemente eliminando quaisquer resquícios da Igreja Universal da Verdade de forma que ela nunca tenha existido.

Jim Starlin transforma Adam Warlock completamente. De um messias que falhou em proteger seus seguidores para um herói galáctico que tenta a todo custo evitar que ele se torne o vilão de tudo, sua ação como herói é impedir que ele seja um herói! Uma incoerência muito bem escrita e que traz questionamentos a qualquer um que esteja lendo aquela historia. Sabendo que algo desse nível foi escrito nos anos 70 só demonstra como os quadrinhos é uma arte rica e cheia de possibilidades.

Starlin usa o Warlock como uma mensagem de que podemos mudar nosso destino e com os aliados certos até os piores do tiranos podem ser derrotados. Toda a saga enfatiza a necessidade de sermos criaturas racionais e pensarmos por nós mesmos e evitarmos seguirmos ao máximo líderes carismáticos e genocidas religiosos. Uma critica muito pertinente na época e reverbera até os dias atuais.

O fim de Magus.

Warlock do passado mata o Warlock do futuro.

Starlin mais tarde trouxe o Adam de volta para enfrentar o Thanos. O titã mata sua filha Gamora, seu inimigo jurado Drax e por último Pip que acreditava que era amigo do Titã. Adam usa sua joia da alma para puxar seus amigos para o mundo dentro da joia e então parte para a terra em busca de ajuda e com o auxílio do Capitão Marvel (E dos vingadores) ele impede os planos do Titã louco. Por fim, como uma espécie de resposta aos questionamentos deixados nas histórias anteriores, Starlin encerra brilhantemente a jornada do Adam Warlock fazendo o Adam do passado matar esse Warlock do presente, fechando o ciclo temporal que foi posto nas histórias anteriores.

Warlock do atual presente é morto pelo Warlock do passado.

Porém no Marvel Two-in-one Annual #2 é nos revelado que Thanos capturou os heróis que restaram e consequentemente tornou-se necessário as entidades Caos e Ordem intervir fazendo com que o Coisa e o Homem-Aranha libertem os heróis presos. O teioso consegue libertar seus amigos e uma batalha épica se segue.

Diante disso Adam Warlock, que estava dentro da joia da alma retorna como uma presença para acabar de vez com o Titã, ao transformá-lo em pedra. Encerrando toda sua história e libertando o mundo de uma ameaça. Por fim Jim Starlin desenha o Adam feliz com seus amigos dentro do mundo da joia da alma, satisfeito por finalmente encontrar sua paz.

Warlock encontra sua paz, enquanto que Thanos encontra seu tormento.

O fim… Ou será que não?

Como nem tudo nos quadrinhos é para sempre Starlin retorna com o Adam, Thanos, Pip, Drax e Gamora dos mortos para mais uma vez criar um embate emblemático. Em Desafio Infinito, Thanos vai atrás das joias do infinito para matar metade do universo em busca de atenção da sua amada entidade conhecida como Morte (A entidade mesmo). Novamente diante dessa ameaça Warlock reúne todos os heróis do universo Marvel para acabar de vez com os planos de Thanos, mas toda essa guerra galática é assunto para outro momento. Desafio Infinito foi base para a Marvel criar toda a saga do Infinito nos cinemas, porém diferente da sua versão dos quadrinhos não tem a presença de Adam Warlock. O quadrinho foi um sucesso e teve duas continuações, sendo elas Guerra Infinita (Com o Magus como vilão) e Cruzada Infinita. Warlock vive outras aventuras após a trilogia do infinito fazendo até mesmo parte dos Guardiões Da Galáxia!

Starlin nessa apoteose demonstra como estava evoluindo com artista e criando uma história que se tornou um clássico esquecido da Marvel. Anos mais tarde debatendo ainda mais essas questões criou seu herói Dreadstar entrando no hall da fama dos grandes criadores de quadrinhos.

Toda essa grande saga de Warlock, Magus e Thanos está presente em diversas edições do Brasil. A primeira vez foi publicada pela editora Abril, que trouxe para o Brasil como A Saga de Thanos em 4 revistas. Anos depois a Salvat trouxe a história por meio da Coleção Oficial de Graphic Novels Marvel 32 e 33. E por último a Panini trouxe essa história no 2 encadernado (O melhor) de A Saga de Thanos.