Enquanto os mangás japoneses se desenvolvem apenas com um único autor trabalhando com sua obra do começo ao fim, os quadrinhos americanos seguem um caminho diferente. É bastante comum uma troca de desenhistas e roteiristas das obras principalmente em gibis americanos. Isso ocorre porque os personagens criados em sua grande maioria são da editora e não do autor especificamente. Polêmicas à parte relacionadas a direitos de personagens, alguns autores são conhecidos por criar péssimas histórias quando assumem algum título de um personagem conhecido, já outros são reverenciados por causar uma revolução não apenas no título em específico, mas em toda a indústria envolvida. Podemos citar diversos exemplos, como toda a brilhante fase do Frank Miller no Demolidor, ou o John Byrne no Superman, mas uma revolução pouco comentada é a brilhante fase do Warren Ellis no Stormwatch.
Vamos começar do começo, Stormwatch foi uma equipe criada pelo Jim Lee no início dos anos 90. O Jim Lee e artistas como Marc Silvestri, Todd McFarlane e Rob Liefeld meteram o pé da Marvel (Editora que trabalhavam na época) e criaram sua própria editora a Image Comics. Além disso eles representaram toda uma ideia de como deveriam ser as hqs do final do século XX. Em seus desenhos para Marvel eles definiram um estilo artístico explosivo, porém carente de profundidade que reverberou por toda a indústria. Para eles a imagem era mais importante que o roteiro e isso retirou toda a importância de roteiristas para as histórias. O desenhista se tornou o foco e diversos conflitos surgiram entre eles e os escritores. O mais critico foi a saída do Chris Claremont nos X-Men, o homem que basicamente criou toda a mitologia dos personagens foi afastado por um grupo de jovens que possuíam uma arte diferente do estabelecido na época, esse era o tamanho do impacto que esses artistas trouxeram.
O próprio Liefeld disse na época “Imagem é tudo” esse lema acabou se tornando a chave para a criação da Image Comics.
A ideia principal da Image Comics é dar total liberdade e autonomia pros seus autores, dentro da editora cada um tem o seu selo e nesse selo cada autor pode criar personagens e histórias e essas criações serão suas pro resto da vida, podendo utilizar ou vender quando quiser e somente uma porcentagem das vendas desses títulos vão para a Image Comics. Jim Lee criou o selo Wildstorm onde começou a trabalhar com suas criações.
Dentro da Image cada um ficou responsável por criar equipes e personagens para os novos títulos que se seguiriam, e o Stormwatch foi uma delas. Tentando se desvencilhar das outras editoras e arquitetando uma equipe do 0, Jim Lee idealiza um grupo (genérico) de super-heróis (Ou anti-heróis) paramilitares que resolvem missões que a polícia comum é incapaz de resolver. Esse tipo de grupo era moda na época e lendo as primeiras edições de Stormwatch é difícil não pensar o quão genérico é essa equipe.
As primeiras edições não explicam absolutamente nada e imediatamente partem para uma ação desenfreada e uma violência gráfica que atrai qualquer adolescente da época. Mas no geral, não passa disso, não tinha mais nada depois dessa primeira camada. E isso continuou por 40 edições até o Warren Ellis assumir.
O homem que influenciou os quadrinhos do século XXI.
Warren Ellis é um roteirista em quadrinhos bastante famoso, mesmo que ultimamente esteja envolto em polêmicas ele criou e desenvolveu grandes histórias sejam originais com criações próprias ou com personagens já existentes. Na DC criou o Authority, um quadrinho que mudou os anos 2000, influenciando todas as hqs que vieram depois (Inclusive os Supremos). Mas antes de existir o Authority, o Warren Ellis inseriu os personagens em outra equipe, justamente o Stormwatch.
Ellis não se limitou a isso, se antes a Stormwatch era simplesmente um grupo paramilitar genérico, que atirava antes de perguntar e vestiam uniformes exagerados com armas e bolsos para todos os lados, Warren Ellis mudou o foco fazendo um questionamento bastante lógico e válido: Por que o Stormwatch existe? Ora, se esses caras são tão independentes dos governos e são realmente capazes de fazer a diferença por que eles não o fazem?
E com essa premissa ele começa sua fase escrevendo esses personagens, Ellis reinicia a equipe, introduz heróis que ele tinha em mente como Jenny Sparks, Jack Hawksmoor e mais tarde Apolo e Meia-Noite, tira alguns personagens da jogada e começa uma história bastante política. Em várias edições o Ellis traz a questão da real utilidade desses personagens. Se super-heróis existem nesse mundo e podem fazer a diferença, o que os impede de fazê-los? E ao fazê-los, o quão pertos de ditadores eles podem ser? O Stormwatch por ser uma equipe que responde diretamente a ONU, pode entrar em qualquer país e fazer o que bem entenderem para solucionar o problema principal da edição. Até onde isso é válido?
Em outros momentos o Ellis também mostra a corrupção das classes militares e políticas desse mundo e como devido à essas condições, a necessidade de acordos políticos cada vez mais complexos se fazem necessários. Por exemplo, em uma das histórias eles investigam um serial killer e acabam descobrindo que esse assassino é filho de um importante político. Como resolver esse problema sem expor para o público? Warren Ellis escreve com maestria e por sua vez atualiza uma equipe até então genérica, para algo questionador e reflexivo.
Stormwatch 44: Aqui tudo mudou.
Mas é em Stormwatch 44 que Warren Ellis realmente cria uma super história. Na edição Jackson King o Batalhão, líder da equipe, pede para Jenny Sparks contar sua história de vida, Jenny com 94 anos (Na época) conta desde o começo de sua carreira como heroína até os tempos atuais. Aqui Warren Ellis e o desenhista Tom Raney brilham! Para contar essa história, eles não apenas se utilizam de contextos históricos e culturais, mas a história das histórias em quadrinhos. Nos 100 anos de vida da Jenny eles vão homenageando épocas diferentes das hqs e demonstrando como a própria indústria e o tom das histórias mudam com o passar no tempo. Uma verdadeira homenagem autores e personagens e uma clara mensagem de que que sem essas lendas e símbolos nenhum dos personagens presentes da hq quanto quem escreve estariam ali.
As referencias são enormes, na década de 20 homenageando Buck Rogers, na década de 30 homenageando hqs da era de ouro como a Actions e Comics, na década de 40 homenageando brilhantemente o Will Eisner, da década de 50 sendo claramente uma referência a Dan Dare, na década de 60 homenageando Jack Kirby e companhia que criaram a Marvel Comics. E por fim após o seu sumiço durante toda a década de 70 e voltando aos anos 80 para enfim homenagear Watchmen e a revolução causada pelo Alan Moore. São vários detalhes não apenas na história, mas nos traços, pegando os estilos de desenho da época e enquadramentos presentes nessas hqs, além de partes técnicas como o uso de pontos Ben-Day para contar sua história. Todos esses fatores tornam a história mais profunda, mais intricada e brilhante. Aqui Stormwatch encontra seu brilho e daí pra frente só melhora.
Se podemos mudar o mundo então iremos fazê-lo.
Outro arco interessante do Ellis no Stormwatch é quando surge uma equipe de vigilantes liderados pelo ex-herói conhecido como Superior, High em inglês (Um trocadilho com chapado) claramente uma paródia da Liga da Justiça (Com alguns membros sendo paródia dos Vingadores) eles surgem com o objetivo de mudar o mundo em que eles vivem, alterando biomas e depondo governos para que a paz mundial seja alcançada. Um objetivo nobre que entra diretamente em conflito com o Stormwatch, para Henry Bendix eles são um perigo e um empecilho para seu objetivo de paz mundial e exige que o Stormwatch dê cabo deles. O homem do tempo acredita que a liberdade é um erro e para mudar o mundo é necessário tirar qualquer tipo de livre arbítrio da população, se tornando por sua vez o deus ditador desse mundo. Warren Ellis debate nessa história o quão fácil os homens podem se perder ao tentar libertar o mundo de suas mazelas e como devemos ficar a atento perante líderes que querem resolver todos os conflitos do mundo da maneira mais superficial possível.
O grupo liderado pelo Superior, embora tenham um objetivo nobre também fazem coisas extremamente questionáveis em busca de uma paz mundial e sabem muito bem o preço dessas escolhas. Se somos capazes de mudar o mundo até onde devemos ir para que esse objetivo seja concluído? Outro excelente questionamento que remete ao que o Alan Moore fez em Miraclamen anos antes.
Em um confronto espetacular é revelado que a Jenny Sparks conhecia o Superior desde os anos 30 e depois de decepções envolvendo o governo ele desapareceu (traços novamente remetendo a era de ouro) e agora volta querendo consertar o mundo, mas o Superior não percebeu que as pessoas não querem mudar, ou pelo menos não nos termos delas e após um confronto com Rose Tatoo e um vírus mortal que matou toda a sua equipe o Superior voa em direção ao Olho do Céu (A nave fortaleza do Stormwatch) morrendo em contato com os escudos da nave. Esse arco é fundamental para o desenvolvimento da Jenny Sparks para criar mais tarde o Authority, além de claro ser muito bem escrito.
Em um dos últimos arcos, agora com os desenhos do Brian Hitch, Ellis traz mais dois vigilantes a trama sendo eles o Apolo e Meia-Noite. Na trama, por meio flash-backs, Apollo e meia-noite foram apresentados como membros de uma equipe de “black ops” do Stormwatch, equipe esta tão secreta que ninguém, somente Henry Bendix sabia de sua existência. As capacidades de energia solar da Apollo foram apresentadas como consequência da bioengenharia de Bendix. Mesmo que as referências ao Super-Homem e ao Batman sejam óbvias ele mostra uma versão bizarra desses personagens, Meia-Noite é sádico e adora sentir a dor de seus adversários, e Apolo embora demonstre ser mais sociável é tão direto ao ponto que mataria qualquer um para concluir sua missão.
Esses personagens foram de essencial importância para o Warren Ellis matar o Stormwatch e conceber uma de suas maiores criações. Em um crossover com os Aliens (Sim, Alien o Oitavo Passageiro) a equipe do Stormwatch é completamente aniquilada e morta. Como consequências desse ato Jenny Sparks resolve criar o Authority, uma equipe que existe exclusivamente para solucionar de uma vez os problemas e ameaças do mundo. Mas sobre toda essa run espetacular do Ellis no Authority será uma conversa pra outro momento.
Authority se tornou a obra de quadrinhos maior influente do século XXI, inspirando a Marvel ao criar os Supremos (Que mais tarde foi usado como base para o MCU.) E a DC anos depois em sua linha dos Novos 52. Mas nada disso seria possível se não fosse Stormwatch, ali o Ellis brincou com toda o gênero de super-herói, da forma narrativa de contar essa história até sua metalinguagem, ele refina isso em Authority, mas as sementes de suas ideias estão todas ali e ler Authority sem ler o Stormwatch diminui um pouco da experiência e ideias que o Warren Ellis quis passar.
A DC anos depois comprou o selo Wildstorm que pertencia ao Jim Lee e adicionou ao seu imenso catálogo renovando mais uma vez o Authority e o Stormwatch, inclusive sendo escrita algumas vezes pelo Grant Morrison! O Authority terá sua primeira estreia nos cinemas com o filme do Superman escrito e dirigido pelo James Gunn que estreia em 2025.
Warren Ellis pegou uma equipe genérica de soldados e renovou o titulo trazendo questionamentos tão atuais e relevantes pra época que influenciou toda uma geração de escritores. A prova de que mesmo uma obra inicialmente careça de valor e de profundidade, um bom escritor é capaz de criar uma história brilhante. Stormwatch saiu em 4 encadernados da Panini.
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